terça-feira, 1 de novembro de 2016

A DIDÁTICA E A ESTRUTURA DA ESCOLA FUNDAMENTAL

Por Vitor Henrique Paro


Os assuntos que chamam a atenção das políticas públicas relacionadas ao ensino fundamental no Brasil, hoje, se referem a questões como a expansão do atendimento, as condições de trabalho na unidade escolar, a qualidade do pessoal docente e sua formação, o provimento de material escolar, a autonomia administrativa e pedagógica da escola, a avaliação do desempenho de alunos e professores, o montante de gastos despendidos ou necessários para o ensino, a participação da comunidade na escola, e outros temas correlatos. Um ponto, cuja presença parece extremamente tímida, quando não totalmente ausente, é o questionamento da maneira de ensinar adotada pelas escolas. Tanto na parte de quem implementa essas políticas, a partir do poder do Estado, quanto da de quem critica as políticas implementadas, como os trabalhadores da educação e os intelectuais e acadêmicos em geral, dificilmente se vê referência à questão didático-metodológica. Mesmo quando se faz a crítica à baixo qualidade do ensino, esta acaba sendo imputada a fatores como má-formação do professor, ou o seu baixo salário ou ainda as características da "clientela", cujas dificuldades, enfim, devem merecer cuidados especiais, mas sem mudar de métodos; apenas adequando-o às novas características do alunado.

[...]
Na verdade, o que se verifica, salvo raríssima exceções, é uma notável ignorância dos assuntos relacionados ao ofício de ensinar por parte dos tomadores de decisões e administradores educacionais tanto em âmbito federal quanto em âmbito estadual e municipal. Desprovidos de qualquer conhecimento técnico-científico a respeito da prática pedagógica, economistas, empresários, etc. passam a ocupar cargos de chefia e comando no âmbito do Ministério de Educação, assim como nos órgãos e institutos a eles vinculados, agindo como se bastassem os conhecimentos referentes a seu restrito âmbito profissional, para tomar decisões, dar andamento a programas e políticas da educação e determinar o próprio rumo da educação escolar no âmbito de sua jurisdição. O fato irônico é que, mesmo entre os que criticam as medidas vigentes, não é raro encontrar ponderações e projetos feitos a partir de um ponto de vista que ignora completamente a Didática. E isso se dá, mesmo entre acadêmicos especialistas em políticas educacionais, em avaliação educacional em financiamiento da educação etc.

[...]
1- O esteio da Didática: querer aprender

A marca característica do homem com ser histórico é sua condição de sujeito, ou seja, de autor, detentor de vontade (derivada de valores por ele criados) e produtor de sua própria materialidade pelo trabalho. Isso ganha força determinante na reflexão sobre educação, na medida em que, entendida esta como apropriação da cultura, visando à formação de personalidade humano-históricas, o processo pedagógico só se realiza plenamente se o educando detiver a condição de sujeito. Isso significa que a aprendizagem depende da vontade do educando, o que nos remete à constatação aparentemente banal de que "o educando só aprende se quiser" (PARO, 2010a).
Esta afirmação tão simples e tão evidente encerra o próprio fundamento da boa didática. É dessa constatação que deve partir todo esforço de mediação para realização do aprendizado, porque educar, em última instância, é propiciar condições para que o educando queira educar-se.

[...] Só o indivíduo educa a si próprio [Anísio Teixeira, Claparède]. A escola e o                           professor facilitam os meios, a educação é, porém, obra do próprio educando. A verdade da afirmativa percebe-se melhor quando se verifica que só se aprende aquilo que se deseja aprender, aquilo que é reclamado por interesse vital [...]. (LEÃO, 1953, p. 208; grifos meus).

Todavia, o que vemos, em geral, em nossas escolas é a completa negação desse princípio. Por mais evidente que ele possa parecer, ainda há a expectativa generalizada de que o educando já venha (ou pelo menos deva vir) à escola com o desejo de aprender. O que se dá, na verdade, é que o modo de ensinar tradicional, porque ignora a condição de sujeito do educando, julga poder preocupar-se apenas com o conhecimento da matéria. Deste ponto de vista, o bom  educador é aquele que domina a matéria e busca organizar seu conteúdo da forma mais apetecível possível, supondo que o educando já está disposto a aprender, bastando, portanto, expor e explicar o que se pretende que adquira. Se esse desejo de aprender é algo inato na criança é uma questão que tende ainda a provocar muita polêmica entre os educadores. E a indefinição de sua resposta tem alimentado preconceitos e predisposições que se mostram maléficos ao ensino. É comum ouvir-se dos professores que uns alunos nasceram com vontade de aprender e outro não. E que com estes últimos não há o que se possa fazer para adquirirem o gosto pelo saber.
Assume-se, assim, que o desejo pelo saber não apenas é inato mas também é impossível de ser adquirido. Observe-se, de passagem, que essa posição invalida a própria razão de ser da Didática se entendermos como propósito essencial desta propiciar condições para que o educando queira aprender.
Mas, querer aprender não é algo que nasce com o indivíduo, mas um valor cultural que precisa ser construído. A questão tem a ver, na verdade, com o que comumente chamamos de motivação. Comenius, ao dizer que "é imprescindível despertar nas crianças o amor pelo saber e pelo aprender" (COMENIUS, 2002, p. 168), acertava com relação à importância do desejo de aprender, mas errava ao acreditar que isso seja algo que se possa "despertar". A palavra "motivação" vem de "motivo". "Motivo", segundo John Dewey, "é o nome que recebe o fim, quando o consideramos em vista da influência que ele tem sobre a nossa ação, do seu poder de nos mover" (1967, p. 93; grifos no original.). É no motivo, pois, que precisamos buscar a motivação. Por isso, não se desperta a motivação, nem se oferece motivação exterior ao motivo da atividade. Não se trata de buscar motivos "para o estudo ou lições", mas de buscá-los "nos estudos ou lições", como nos afirma o mesmo Dewey (1967, p. 94).

Levar o aluno a querer aprender exige, apara além do conhecimento da "matéria" ensinada, o conhecimento do próprio educando. Segundo o grande educador M. B. Lourenço Filho, "não se educa a alguém senão na medida em que se conheça esse alguém" (LOURENÇO FILHO, 2002, p. 82). O mesmo autor tem uma forma bem ilustrativa de enfatizar a necessidade de conhecimento do educando por parte de quem educa, fazendo uma analogia da atividade educativa com a atividade médica. Diz ele que,

como na arte médica se faz necessário conhecer o doente, assim também na arte educativa será preciso conhecer o educando. A substituição dos princípios empíricos da escola tradicional, por outros de base técnica, deveria começar por aí. Em um caso como noutro, a técnica cooperativa não exclui o conhecimento da natureza do ser, expressa em elementos e funções, ou o das relações entre dadas situações e seus resultados prováveis. Não basta ao médico o desejo de curar para que a cura se dê. Será preciso que conheça o organismo humano, a ação dos regimes e o efeito das substâncias terapêuticas; que saiba diagnosticar, encaminhar o tratamento, apreciar-lhe os resultados progressivos, prever complicações e consequências da própria ação cooperativa que proporcione. É isso, afinal, que o distingue do curandeiro ou charlatão. (LOURENÇO FILHO, 2002, p. 82).

Lourenço Filho completa seu pensamento dizendo que o educador está no mesmo caso do médico, e que "não será eficiente o trabalho do mestre se ele não tiver uma visão clara dos recursos do educando, a fim de que, em cada caso, possa proporcionar as situações mais desejáveis, ou indicadas à consecução dos propósitos que possa ter em vista" (LOURENÇO FILHO, 2002, p. 82).

Se sabemos que o aprendizado depende da vontade do educando, é preciso saber como se constitui essa vontade. Daí a importância de procedimentos e métodos de ensino que levam em conta o desenvolvimento biopsíquico e social do ser humano, desde o momento em que nasce até, pelos menos, a entrada na adolescência. Nesse período, em grande parte abrangido pelo ensino fundamental, se dá o mais importante da formação da personalidade humana. A Psicologia da Educação identifica fases ou estágios de desenvolvimento, evidenciando que, nas diferentes idades, a criança ou o jovem pensa, sente, interpreta, valora, julga de formas diferentes, de acordo com seu desenvolvimento biológico, psíquico e social. No dizer de Janusz Korczak (1997, p. 106), "a maioria dos erros que cometemos nos nossos julgamentos sobre as crianças acontecem porque emprestamos nossos pensamentos e sentimentos às palavras que elas nos tomam emprestado e que muitas vezes têm elas uma significação diferente da nossa".
Em pleno século XXI, a escola ainda trata a criança como se fosse um pequeno adulto. Haja vista que uma aula no início do ensino fundamental tem, em geral, os mesmos elementos didáticos de uma aula no curso de pós-graduação: um mestre explicando determinada matéria para uma turma de alunos que o escuta passivamente. Acontece que o professor "explicador" (RANCIÈRE, 2004) pode funcionar bem para um adulto, que já tem sua personalidade formada, mas para uma criança. O fato de uma criança de cinco ou seis anos saber expressar-se fluentemente diante de determinada situação leva o adulto desprovido de conhecimento sobre o desenvolvimento psíquico a acreditar que ela também pensa como um adulto. Isso é lamentavelmente enganoso para o senso comum, que não estudou Pedagogia ou Psicologia da Educação, mas não deveria ser admitido pelo menos para os responsáveis pela educação escolar. No entanto, é muito comum exigir-se dos alunos do ensino fundamental pré-requisitos para o aprendizado, como a atenção em aula, o interesse no estudo etc., cuja obrigação é da escola desenvolver. Izabel Galvão é bastante clara sobre o assunto quando ressalta que,

ao cobrar dos alunos uma atenção suficientemente madura para a aprendizagem, a cultura escolar incorre na contradição de tratar a atenção como um pré-requisito para a aprendizagem, quando, na verdade, ela é também produto desta. Dos pontos de vista psicológicos e neurológicos, a atenção é uma conduta voluntária e, enquanto tal, depende do desenvolvimento cortical, onde se localizam os últimos centros nervosos a se constituírem. O córtex cerebral não amadurece apenas por ação biológica - isto é, espontânea. Seu desenvolvimento depende da ação da cultura. assim, quanto mais conhecimentos e conceitos são adquiridos pelo aluno, maiores suas possibilidades de controlar impulsos e, por conseguinte, ter atenção. O desenvolvimento dessa habilidade é, portanto, coetâneo da aprendizagem. (GALVÃO, 2004, p. 198; grifos meus)

Nessa mesma direção vai o pensamento de David Wood, que, ao comentar a suposta deficiência de se concentrar e prestar atenção por parte dos educandos, afirma:

[...] a capacidade de prestar atenção e se concentrar não é simplesmente algo natural que as crianças "possuem" em maior ou menor grau. [...]

[...]

Essa escola insiste em ignorar a necessidade de o ensino ser intrinsecamente desejável pelo educando. Por isso, o aluno resiste a um processo desinteressante, que lhe nega tudo aquilo que o estimule e lhe dê prazer, e que o toma como se fosse mero mecanismo que processa informações sem exercitar sua condição de sujeito. Assim, temos a situação em que o método tradicional adotado por nossa escola busca motivações extrínsecas ao próprio processo pedagógico, fundamentadas no prêmio (a aprovação ou o diploma) e no castigo ( a reprovação). Diante disso, o aluno se mostra suficientemente sagaz para criar formas de estudar, ou de fingir que estuda, não para aprender (como ele faria se fosse de seu interesse), mas para livrar-se do estudo. Com isso, a vida escolar tem sido uma experiência penosa, em que o estudante prefere buscar o prêmio e evitar o castigo, mesmo com prejuízo do aprendizado, pois o aprender-sem-prazer que a escola, secularmente, tem oferecido já é, por si, um castigo que aluno nenhum merece.

[...]

Mas a razão por que os professores utilizam os métodos ultrapassados não é a inexistência de novos. A Didática dispõe de mil maneiras de ensinar brincando. Minha hipótese é que não utilizam nem vão à procura dos métodos novos, que levam em conta a subjetividade do educando, porque trabalham em uma escola estruturada por uma visão tradicional de educação que não reconhece o educando como sujeito. esses professores, quando crianças, tiveram suas personalidades formadas por essa mesma escola. Ouso dizer que seu modo de ensinar não consiste sequer em uma aplicação do que lhe foi ensinado nos cursos de formação docente, mas sim na concretização dos mesmos princípios e ideais da escola que frequentaram quando crianças e que agora eles reproduzem para seus alunos.

FONTE: Fragmento do artigo "A Didática e a Estrutura da Escola Fundamental/Vitor Henrique Paro" constante do livro "Como Romper com as Maneiras Tradicionais de Ensinar? Reflexões Didático-metodológicas"-Andréa Rosana Fetzner (organizadora).