terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

CURRÍCULO E PROJETO PEDAGÓGICO: DA IMPOSSIBILIDADE DE REFLETIR SOBRE UM SEM REFLETIR SOBRE O OUTRO

Dizer que a educação é uma prática social necessária e intencional já se tornou lugar comum no discurso sociológico e pedagógico. Contudo, não é demais explicitar o caráter de intencionalidade social da educação escolarizada. Educar é, portanto, sob este ponto de vista uma atividade para transformar as circunstâncias por meio da transformação dos sujeitos, interferindo nos seus processos de aprendizagem.
     Para educar é necessário, então, deixar claro em que se pretende que os sujeitos se transformem, como se interferirá na aprendizagem ou de, uma maneira menos passivadora, que orientação se pretende dar aos processos de aprendizagem. Este conjunto de definições sobre fins, objetivos, meios relativos ao processo educativo é o que se pode denominar currículo.
     O currículo expressa o projeto pedagógico da escola, organiza e orienta determinada prática educativa. Ao elaborá-lo a escola deve sempre levar em consideração o aluno, a sociedade e a cultura. Na composição do currículo cabe à escola decidir acerca das experiências que deverão ser desenvolvidas a partir das necessidades históricas colocadas pelo aluno e pela sociedade, fundamentando-se em critérios de ordem filosófica, política, econômica, cultural, social e pedagógica.
     De fato, são muitos os processos prévios que determinam o curriculo e sua elaboração. Não obstante, sua elaboração só termina na hora em que a prática tem lugar. Na prática mesma é que se manifesta o currículo como produto completo, resultado de um conjunto de determinações como o programa escolar, as regulamentações vigentes na instituição, a formação do professor, sua postura política, as aprendizagens prévias dos alunos, o material utilizado e sua interação com a realidade imediata, o ambiente físico, entre outros.
     No atendimento às necessidades dos alunos e da sociedade, o currículo deve considerar as exigências de um mundo de relações complexas e diversificadas, proporcionando ao aluno um conjunto de experiências que lhe assegure a compreensão de sua realidade, uma fundamentação sólida em termos de formação básica que instrumentalize o aluno para atuar sobre esta realidade de forma crítica. Assim concebendo o papel do currículo vê-se que não tem cabimento propostas curriculares que visem a resumir conteúdos ou a restringir o aluno em seu mundo cultural de origem.
     Os conteúdos ganham relevância se tomados como meios para que professores e alunos, engajados em um processo coletivo, construam saberes que possibilitem uma inserção dinâmica no processo de ensino-aprendizagem. De acordo com esta perspectiva, longe de representar uma mera transmissão do saber, o processo ensino-aprendizagem ganha uma nova dimensão, qual seja a de tornar professores e alunos sujeitos do processo do conhecimento.
     O currículo se desenvolve em uma instituição com os profissionais da educação em relações sociais de produção, constituindo uma organização de trabalho. Cada organização apresenta uma cultura própria, ou seja um conjunto de pressupostos, valores, idéias que o grupo desenvolveu ao ir lidando com os problemas do cotidiano e que vão sendo passados aos novos membros como a forma correta de perceber, pensar e sentir com relação a esses problemas (SCHEIN, 1986, citado por FLEURY, 1995:24). Sobressai dessas colocações o papel do educador como o adulto, que muitas vezes é o que toma decisões e define a organização escolar.
     Hoje propostas mais avançadas em termos de currículo pressupõem que é importante o aprendizado para o aluno de se organizar, de decidir regras de convivência, de ser capaz de planejar ações, acompanhá-las e avaliá-las. É nesse contexto que pode-se dizer que uma instituição escolar é educativa ou deseducativa. De nada adianta um currículo que proclame por intermédio de seus conteúdos programáticos que a sociedade deve ser democrática, se na escola as relações não são democráticas. De nada adianta dizer nas aulas que não se deve ter preconceito de sexo, raça, cor, credo e origem social, se no cotidiano da escola as discriminações vão ocorrendo. De nada adianta dizer que as mulheres têm direitos iguais aos dos homens, se no dia-a-dia a escola vai contribuindo para reforçar o papel subalterno da mulher quando difunde a idéia de vocação inata à condição feminina para determinadas profissões, invariavelmente as de baixo prestígio social. De nada adianta proclamar nas teorias que não se deve ter preconceito de raça, se na escola, por meio das relações entre as pessoas reforça-se o preconceito racial quando atribui ao negro aptidão física para esporte, dança, em detrimento da capacidade intelectual e do raciocínio lógico.
     Podem-se, por outro lado, vivenciar positivamente as duas dimensões da escola, quando nas aulas fazem-se leituras, discutem-se, produzem-se trabalhos sobre racismos, relações de poder e, ao mesmo tempo, vivenciam-se no "chão da escola" experiências nas quais se percebe que o tratamento é respeitoso com o divergente, nas quais se constata que as pessoas independemente da cor, da raça ou da origem sócio-econômica têm tratamento democrático.
     Há uma tendência a se chamar a esta dimensão do currículo de "currículo oculto". Prefere-se aqui dizer que trata-se de dimensões da organização possíveis de serem construídas com a intenção explícita de tornar a organização escolar educativa.
     É nesse processo de construção de relações de tipo novo que uma cultura institucional vai sendo definida. É nesse processo de construção de relações sociais de tipo novo que o adulto exerce um papel importante e educativo de questionamento, de engajamento do aluno na construção dessa organização, de envolvimento de todos nas tomadas de decisões, nas definições de tarefas, no estabelecimento das prioridades, entre outros aspectos (SILVA, 1995) (1) Uma proposta de currículo e uma organização escolar preocupadas com a participação do aluno na vida social, com a sua sobrevivência, com a sensibilização e o respeito às suas raízes deve vir acompanhada da intenção clara e definida dos educadores e educandos que vivenciam as experiências na escola de transformar as circunstâncias atuais. E isso significa um currículo que parta das preocupações humanas profunda e amplamente sentidas, mas que apresente alternativas de aprendizado, de destrezas e conhecimentos que facilitem a capacidade coletiva de intervir nesse mundo e reconstruí-lo (SILVA, 1994) (2).
     A escola, hoje se situa em meio a um complexo de instituições que também ocupam papel na veiculação de informações, como é o caso do rádio, da televisão, das revistas, dos jornais, da INTERNET. Não se trata de negar as informações que estas outras fontes proporcionam, mas de dar-lhes tratamento pedagógico. A escola pode, por intemédio das atividades curriculares, contribuir para que o aluno receba as informações provenientes dessas fontes de forma crítica, buscando analisá-las, compreendê-las, ampliá-las, percebê-las como portadoras de intenções nem sempre declaradas e a se posicionar diante delas.
     Como não é possível elaborar um currículo fora de cada situação concreta de ensino-aprendizagem, pode-se ir atuando sobre esse processo e sobre os seus diferentes componentes, de modo a condicionar a prática educativa em maior ou menor grau. É o fato de existir uma orientação ou uma direção que se vai imprimindo na prática o que caracteriza uma ação educativa e a existência de um projeto pedagógico. Essas e outras reflexões poderão ser feitas e servir de ponto de partida para que a escola reflita sobre seu projeto pedagógico e se defina pela cultura institucional que deseja construir em direção um processo de transformação, tendo por base relações sociais de tipo novo.


     (1) Mestre em Educação pela PUC/RJ Doutora em Educação pela UNICAMP, Consultora em Planejamento e Projetos Educacionais da UFJF, Consultora em Currículos e Programas de Ensino, Professora da UFMG
     (2) SILVA, Maria Aparecida da. O Currículo e a Formação de Educadores. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da UFMG, i995, mimeo.
     (3) SILVA, Maria Aparecida da A. Administração dos Conflitos Socias; as reformas administrativas e educacionais como respostas às questões emergentes da prática social (o caso de Minas Gerais). Tese de Doutorado. Faculdade de Educação, UNICAMP, Campinas, 1994, p. 210-


FONTE:
PBH.GOV