terça-feira, 17 de outubro de 2017

COMO INCLUIR UM ALUNO SEM LAUDO PSICOLÓGICO

TDAH, ansiedade, dislexia. Para além do diagnóstico, você pode ajudar todo mundo a aprender. Saiba como
Por: Pedro Annunciato
Na turma de 5º ano, havia um aluno que não lia nem escrevia. Será que ele tinha algum transtorno de aprendizagem? As pistas eram poucas. “Eu achava que ele nem era alfabetizado. Só copiava da lousa. Quando tentava produzir algo, errava a escrita. Ficava nervoso e jogava fora”, lembra Cinthia Vieira Brum, professora da EMEF Edson Luis Lima Souto, em Campinas (SP). Ela encarou esse desafio em 2010. Estava no início da carreira e não sabia muito bem como agir.
Começou pelo básico: prestou atenção ao menino. Depois de muito observar, notou que ele era, sim, capaz de produzir. O garoto sabia escrever alguns textos de memória. Cantigas, por exemplo. “Ao contrário do que me diziam, percebi que ele era alfabetizado!”, conta. Mas as dificuldades ainda a faziam pensar em transtorno. Haveria alguma doença bloqueando a escrita?
Uma colega de escola a fez refletir de forma diferente. A proposta era focar no potencial do menino e deixar de lado o suposto problema. Ana Flávia Buscariolo abriu sua sala para que Cinthia visse a atividade do texto livre: as crianças ficam diante do papel em branco e podem escrever o que quiserem – sem temas predeterminados, sem exigências e, principalmente, sem pressões.
Cinthia teve um estalo: será que, assim, o seu aluno que precisava de ajuda não conseguiria se soltar? No começo, foi difícil. O menino ainda resistia. Mas, com a ajuda de um colega, algo saiu. “Ele acabou escrevendo uma descrição do que estava acontecendo na sala. Esse momento foi muito importante”, conta Cinthia. Daí em diante, com essas e outras técnicas, como as leituras em roda, as produções foram melhorando e o garoto avançou. No fim do ano, era capaz de produzir texto de diversos gêneros.
Bem, você já deve ter percebido que, até agora, não se falou em diagnósticos, muito menos em laudos. O caso do aluno de Cinthia era uma questão emocional – um aluno que ficava muito nervoso ao ter de escrever no ambiente escolar. A solução não passou por remédios, mas pela observação atenta e o uso das estratégias pedagógicas mais adequadas. Claro que nem sempre é assim. Existem transtornos severos que precisam de medicação. Mas muitas situações que a escola poderia resolver pegam o atalho do consultório médico. O trajeto é conhecido: aparece um problema, a família é chamada, exige-se um diagnóstico e só depois começa a investigação pedagógica sobre o que fazer. E pode acontecer até de a constatação de uma doença ou transtorno desanimar a equipe em relação ao potencial do aluno.
Os quadros que compõem esta reportagem jogam com essa dualidade: nem tudo é doença. Quando uma criança não corresponde a certas expectativas de comportamento e aprendizagem, muitos professores e familiares se sentem angustiados e perdidos, esperando que a medicina dê alguma resposta. Ela tem um papel importantíssimo, mas nem tudo depende dela. E, independentemente de haver um diagnóstico definido, há sempre medidas que a escola pode adotar. Nas páginas seguintes, você vai conhecer algumas. Elas também podem favorecer mesmo quem não tem qualquer transtorno.
Laudo: o que é e para que serve
Num caso como o do aluno de Cinthia, era possível esperar um diagnóstico como dislexia, um transtorno que gera dificuldade na compreensão de leitura e no reconhecimento da associação de símbolos e fonemas. Nessas situações, a expectativa da escola é que um documento identifique um conjunto de sintomas e apresente uma saída adequada para o problema.
Esse documento é o laudo. Do ponto de vista legal, trata-se de um registro emitido por um médico especialista ou uma equipe multidisciplinar (formada por fonoaudiólogos, psiquiatras, psicólogos e psicopedagogos) que descreve o método de diagnóstico, as alterações observadas no paciente e a conclusão – geralmente, algum transtorno ou deficiência. O problema é descrito conforme os padrões da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, a famosa CID, estabelecida pela Organização Mundial da Saúde, que atribui um código para cada diagnóstico. No caso da dislexia, por exemplo, o laudo teria a CID 10 - R48. Junto, pode vir uma ou outra recomendação: sente o aluno na frente da sala, relativize os erros ortográficos, flexibilize o tempo de avaliação, por exemplo.
Alunos sem laudo não podem ser barrados. A resolução nº 4 do Ministério da Educação (MEC) sobre o Atendimento Educacional Especializado (AEE) garante que, no caso de estudantes com deficiência, não há necessidade de comprovação médica para matrícula. “Mas, na prática, muitas escolas e redes públicas pedem o documento para buscar recursos específicos e prever adaptações na metodologia. Isso é permitido pela lei, já que alguns equipamentos estão condicionados à apresentação do documento”, esclarece Simoni Lopes de Sousa, advogada especialista em direito educacional e membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
O diálogo truncado com a saúde
Atender casos que envolvam questões de saúde é uma tarefa desafiadora. Exige que atores distintos – a escola, a família e os profissionais da saúde – trabalhem de maneira articulada, o que nem sempre é fácil. Algumas escolas também produzem relatórios para ajudar no acompanhamento clínico. Mas, em geral, a relação entre profissionais da saúde e professores não é a ideal.
“O melhor seria que médicos, psicólogos e fonoaudiólogos mantivessem com os professores um diálogo próximo e constante. Mas são raras as visitas à escola. Então, o médico precisa fazer um acompanhamento a distância e contar com a família”, diz Erasmo Barbante Casella, chefe da Unidade de Neurologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo.
O problema maior é quando não há acordo sobre o que fazer. As polêmicas costumam surgir quando os médicos avançam sobre o terreno da Pedagogia. Alguns professores reclamam de receber indicações inadequadas. Maria da Paz Castro, consultora de inclusão com larga experiência em sala de aula, lembra de situações assim. “Já vi pedirem para colocar cobertores pesados sobre uma criança com síndrome de Down, para segurá-la no chão”, conta a docente.
Quando a situação chegar a esse ponto, se o médico, fonoaudiólogo ou psicólogo estiver disponível, vale buscar o diálogo para o acordo. E a família é sempre um parceiro indispensável. “É fundamental discutir o diagnóstico com os responsáveis e dar o encaminhamento”, diz Erasmo. Quando não for possível um consenso, Simoni recomenda que a escola tome o assunto em suas mãos e decida junto com a família. Segundo a especialista, vale se cercar de cuidados. “Converse com os pais sobre as razões pelas quais o professor se nega a cumprir a indicação médica. Registre em ata e faça cópias assinadas.”
Na sala de aula, foco no pedagógico
Para os professores, uma frustração comum é o fato de que o laudo, por si só, não resolve os problemas de aprendizagem. E vem a sensação de impotência. “Como a profissão é desvalorizada, o próprio docente se sente desautorizado a educar. É um equívoco”, defende Maria da Paz. “Esse é o âmbito sobre o qual ele tem o domínio, e isso não deve ser delegado ao médico e ao terapeuta”, diz.
Por isso, a especialista defende que o educador não precisa esperar o documento para pensar nas estratégias de sala de aula. Do ponto de vista pedagógico, o laudo compõe um conjunto maior de informações sobre a maneira como o aluno se porta em sala e como aprende. “O registro indica o tipo de tratamento a fazer, mas não ensina como alfabetizar, por exemplo. Ele ajuda a conhecer a criança um pouco melhor, mas não é e nem pode ser um currículo”, afirma Maria da Paz.
Então, o que fazer diante de um aluno que não tem o desempenho esperado ou se comporta de forma atípica? Na verdade, casos assim não exigem um estudo muito distinto do que é feito para qualquer outro estudante. A regra de ouro é prestar atenção individualmente. Depois, com base na observação atenta e no conhecimento didático da disciplina que você leciona, desenhar as estratégias para a aprendizagem.
Em primeiro lugar, é preciso compreender o que se passa com a criança. É fundamental se aproximar da família. Uma entrevista com os pais sobre o comportamento e a rotina do aluno pode ajudar a entender melhor o comportamento. Aqui, cabe muita sensibilidade: a família às vezes passa por um momento de dor e angústia quando se vê diante do diagnóstico – ou da possibilidade de diagnóstico – de um transtorno. Portanto, é preciso ter cautela ao recomendar, por exemplo, que procurem por um profissional da saúde. A equipe gestora pode e deve participar dessa conversa.
Um segundo passo se dá na sala de aula. Considere que cada um aprende em um ritmo e de um jeito diferente. Proponha atividades variadas e examine quais trazem melhores resultados. O aluno com dificuldade aprende melhor visualmente? Por meio de sons? Gosta de música? Aposte nos recursos que parecerem mais úteis e mantenha altas as expectativas sempre. “O laudo não deve ser usado para o professor facilitar as coisas para o estudante. Isso não vai ajudá-lo”, argumenta Heloísa de Oliveira Macedo, pesquisadora do grupo de Pesquisa, Pensamento e Linguagem da Faculdade de Educação da Unicamp e membro do Conselho de Fonoaudiologia da 2ª região de São Paulo.
O tema deve estar presente nas reuniões da equipe. O Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC), por exemplo, é uma boa oportunidade para montar e discutir com os colegas um relatório detalhado sobre a criança. No caso de pessoas com deficiência, o professor do AEE, em geral, faz um relatório descritivo, com falas e situações do aluno em sala. A precisão é importante: evite frases que dizem pouco, como “o aluno não obedece às ordens da professora”, e opte por descrições concretas, como “quando a docente pediu silêncio, o aluno respondeu com um xingamento”.
A leitura coletiva desses relatórios, feitos semanalmente ou a cada 15 dias, ajuda a buscar soluções e prepara os professores que receberão a criança. “O importante é se preocupar menos com o nome do transtorno ou o diagnóstico da deficiência e falar mais de prática pedagógica. A discussão tem que ser sobre o sujeito e a barreira que está impedindo a aprendizagem”, explica Meire Cavalcante, mestre em Educação inclusiva pela Unicamp. Com laudo ou sem laudo, há um aluno. E é o desenvolvimento dele que está em jogo.

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