sexta-feira, 30 de agosto de 2019

CHEGA DE "AULINHAS" PARA OS PEQUENOS

Eles precisam de muito mais do que isso para se desenvolver, e a BNCC elenca seis direitos de aprendizagem que a escola precisa garantir. Mas como isso pode se traduzir no cotidiano?

Conviver, brincar, participar, explorar, expressar e conhecer-se: quem observa esses seis verbos que aparecem em destaque na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de Educação Infantil não se surpreende. Parece meio óbvio que tudo isso aconteça todos os dias nas creches e pré-escolas. Não é bem assim. “Escolhemos palavras muito diretas, mas isso não significa que essas ações já estejam sendo realizadas nas instituições”, afirma Zilma Ramos de Oliveira, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e uma das autoras das versões iniciais do documento, que passará a ser obrigatório a partir de 2020 (leia entrevista com ela no quadro ao fim da reportagem).
Os seis verbos são parte dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento definidos pela BNCC. Dentro das instituições, eles são princípios que devem nortear todas as práticas, junto aos Campos de Experiência e os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, também listados na BNCC. “Os direitos são o fermento do trabalho pedagógico na Educação Infantil”, afirma Zilma. Não quer dizer que essas ações não aconteçam - elas já são naturalmente feitas pelos pequenos, mas a Base orienta que elas sejam planejadas e estimuladas com o foco de proporcionar a aprendizagem.
De acordo com a pesquisadora Maria Malta Campos, da Fundação Carlos Chagas, em São Paulo, os direitos de aprendizagem “são coerentes com a concepção de uma criança ativa”. Tal definição já estava presente nas Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação Infantil (DCNEI).
Além dela, outro ponto trazido pelo documento, de 2009, também embasou a criação dos seis direitos: a proposição dos eixos Brincadeiras e Interações como estruturantes da prática do educador. “Essa concepção perpassa tudo. Ela se refere a um modo lúdico de encarar o mundo, e sempre na companhia do outro”, afirma Maria Virgínia, formadora de professores do Instituto Avisa Lá, na capital paulista. “Os direitos são um aprofundamento do que já estava definido e, basicamente, eles afirmam que é preciso superar o modelo de ‘aulinha’ na Educação Infantil”, completa.
Os direitos andam juntos

Parece uma situação simples: explorar a elaboração de uma receita. Mas a maneira como Camila Bon, professora do Colégio Marista de Brasília e mentora do Time de Autores de NOVA ESCOLA, organizou a proposta permitiu que as crianças da turma de 4 e 5 anos com quem ela trabalhou em 2018 tivessem diversos direitos de aprendizagem atendidos. A turma selecionou a receita, elaborou uma lista de compras, seguiu os passos definidos pelo texto, preparou o ambiente e recepcionou os colegas para consumir o alimento preparado. Nessa sequência de atividades, elas puderam participar ativamente e de maneira democrática na definição dos rumos do trabalho, conviver com colegas e adultos ao realizar atividades em grupo e em diversos espaços da instituição, explorar os ingredientes e os materiais que fizeram parte da atividade, e assim por diante.
O exemplo de Camila mostra como os direitos de aprendizagem surgem durante o processo pedagógico. Todos os dias, em todos os momentos, há oportunidades para que eles sejam contemplados. Mas, então, como planejar o trabalho?
Um bom começo é saber o que não fazer: reservar espaços na rotina para cada um deles. Isso porque a lógica das crianças faz com que eles venham à tona o tempo inteiro. Tendo isso em mente, é preciso conhecê-los bem para pensar em propostas que possibilitem que eles sejam exercidos, para além do senso comum.
“Os verbos são intuitivos, mas isso pode ser enganoso. É preciso revisitar o significado de cada um deles”, afirma Maria Virgínia (leia o quadro abaixo). “Precisamos ler o texto da BNCC e responder: que o que está descrito ali é cumprido, de fato, na escola?”, diz a especialista.
Na hora de criar as atividades, vale pensar em momentos que permitam a participação ativa de todos de acordo com suas possibilidades físicas e cognitivas e que não sejam direcionados demais pelos adultos. O olhar atento também é fundamental para analisar as interações e fazer intervenções que se baseiem nos interesses das crianças e que possam aprofundar a maneira como os direitos estão sendo cumpridos.
 “Ao mesmo tempo, planejamos mas também encaramos situações que não parecem tão centrais, mas são importantes. É em uma discussão entre as crianças, nos conflitos, nas decisões sobre os rumos das atividades que muitos direitos aparecem”, descreve Camila sobre o seu dia a dia.
Por fim, vale refletir constantemente sobre a prática, avaliando se o trabalho já feito foi ou não efetivo para garantir o cumprimento dos direitos. “Como ainda é algo novo, é sempre preciso planejar, aplicar e depois analisar o que aconteceu em sala”, conta Camila.
NADA OBVIOS
Os verbos que iniciam os direitos de aprendizagem são facilmente reconhecidos, mas o sentido dado a eles vai além do senso comum

CONVIVER
O QUE DIZ A BNCC: 
Conviver com outras crianças e adultos, em grupos, utilizando diferentes linguagens, ampliando o conhecimento de si e do outro, o respeito à cultura e às diferenças.
VISÃO APROFUNDADA: Não basta que as crianças estejam fisicamente juntas. O trabalho deve permitir que elas interajam durante as atividades e solucionem problemas em conjunto.

BRINCARO QUE DIZ A BNCC: Brincar de diversas formas, em diferentes espaços e tempos, com diferentes parceiros (crianças e adultos), diversificando seu acesso a produções culturais, seus conhecimentos, sua imaginação, sua criatividade, suas experiências emocionais, corporais, sensoriais, expressivas, cognitivas, sociais e relacionais.
VISÃO APROFUNDADA: As crianças devem escolher com quem e como brincar. Ao professor, cabe propor espaços, tempos e materiais para o brincar, além de propor novas maneiras de brincar.

PARTICIPAR
O QUE DIZ A BNCC: 
Participar ativamente, com adultos e crianças, tanto do planejamento da gestão da escola e das atividades propostas quanto da realização das atividades cotidianas, como a escolha das brincadeiras, e ambientes, desenvolvendo linguagens e elaborando conhecimentos. 
VISÃO APROFUNDADA: 
Pode ser concretizado com assembleias, mas também com as crianças participando do planejamento: listando atividades favoritas ou propondo soluções para conflitos.

EXPLORARO QUE DIZ A BNCC: Explorar movimentos, gestos, sons, formas, texturas, cores, palavras, emoções, transformações, relacionamentos, histórias, objetos, elementos da natureza, na escola e fora dela, ampliando seus saberes sobre a cultura, em suas diversas modalidades: as artes, a escrita, a ciência e a tecnologia.
VISÃO APROFUNDADA: Explorar é natural para as crianças, mas a BNCC propõe buscar espaços além da sala de referência, separar materiais e instigar a curiosidade para outros assuntos.
EXPRESSAR-SEO QUE DIZ A BNCC: Expressar, como sujeito dialógico, criativo e sensível, suas necessidades, emoções, sentimentos, dúvidas, hipóteses, descobertas, opiniões, questionamentos, por meio de diferentes linguagens.
VISÃO APROFUNDADA: A criança deve ser estimulada a se colocar, de diferentes maneiras, de acordo com suas possibilidades: seja pelo uso da oralidade, da escrita, do desenho, da dança, da música.
CONHECER-SEO QUE DIZ A BNCC: Conhecer-se e construir sua identidade pessoal, social e cultural, constituindo uma imagem positiva de si e de seus grupos de pertencimento, nas diversas experiências de cuidados, interações, brincadeiras e linguagens vivenciadas na instituição escolar e em seu contexto familiar e comunitário.
VISÃO APROFUNDADA: O direito refere-se ao autoconhecimento em várias dimensões: sobre o próprio corpo, a sua família e a comunidade, a própria história e também seus interesses e gostos.

Fontes: Maria Virgínia Gastaldi, formadora do Instituto Avisa Lá, e documento Campos de Experiências: Efetivando Direitos e Aprendizagens na Educação Infantil
Trabalho em conjunto
O cumprimento dos direitos passa, em grande parte, pelo trabalho desenvolvido pelos educadores diretamente com as crianças, mas ele também demanda a cooperação de outras esferas: funcionários, pais, gestores e rede precisam estar alinhados sobre como esses direitos serão cumpridos dentro da realidade de cada município e de cada escola.
O ponto de partida é criar um consenso sobre a ideia de infância que embasa o trabalho na Educação Infantil: da administração pública até a equipe técnica da instituição precisam acreditar na importância de estimular crianças para que sejam ativas e autônomas.
Dentro da instituição, o documento Campos de Experiências: Efetivando Direitos e Aprendizagens na Educação Infantil (disponível em bit.ly/CamposdeExperiencia) indica algumas ações que diretores podem tomar, como garantir os recursos necessários para o trabalho e oferecer tempo para que eles possam ser respeitados.
Outro aspecto importante é garantir a formação em serviço a respeito do assunto. No Colégio Marista, Camila coordena um grupo de estudos sobre Educação Infantil. Nesse espaço, professores se encontram para fazer a leitura de textos e compartilhar suas práticas.
“Falamos sobre o que planejamos ou sobre o que executamos e pensamos sobre isso em conjunto. Há uma abertura para aceitar que não se trata só de críticas, mas de contribuições feitas pelos colegas”, conta.
Nas instituições públicas, a carga horária para esse momento é garantida pela Lei do Piso e é utilizada de diferentes maneiras de acordo com a rede. O importante, aqui, é que o coordenador pedagógico - responsável pelo desenvolvimento profissional da equipe - aborde os direitos nos encontros.
Na gestão da rede, diversos aspectos também precisarão ser enfrentados. “A partir da BNCC há um extenso trabalho a ser realizado: rever a infraestrutura física dos estabelecimentos, os materiais pedagógicos, a formação inicial e continuada dos profissionais, as rotinas e formas de arranjo dos espaços”, diz Maria Malta. Só com a articulação de todos os níveis, junto ao trabalho executado junto às turmas, é que esses direitos poderão ser respeitados.
Fotos: Gustavo Gomes

ENTREVISTA: Zilma Ramos de Oliveira
“Separar cuidar e educar só existe na lógica do adulto”
Professora da USP explica a BNCC para a Educação Infantil, que entrará em vigor para a etapa em 2020
NOVA ESCOLA Por que se optou por organizar a BNCC em direitos e campos de experiência?
ZILMA DE OLIVEIRA O Plano Nacional de Educação (PNE) previa essa organização. Buscamos, então, seguir a recomendação pensando em como garantir o direito a ser cumprido pela Educação: o de aprender. Chegamos a seis verbos, fáceis de reconhecer e memorizar, porque queremos que sejam internalizados pelos educadores.
NE Os direitos definem uma linha de trabalho?
ZO Não. Abordagens de diversas inspirações se enquadram dentro da proposta. Até porque a decisão sobre qual metodologia usar cabe aos professores e às escolas. Na BNCC, a única definição que propomos é de uma criança ativa. Ou seja, só não são admitidas propostas que impliquem uma criança calada, sem participação.
NE Os cuidados com higiene e alimentação não são tratados com tanta profundidade na BNCC. Qual o espaço nessa nova proposta?
ZO A ideia era não separar as dimensões de cuidar e educar porque essa separação é algo que existe apenas na lógica do adulto. Tanto nos direitos quanto nos campos de experiência e nos objetivos está a ideia de que ao ser cuidada, a criança aprende mais sobre si e aprende também o autocuidado.
Zilma Ramos de Oliveira, redatora das versões iniciais da BNCC.
CRÉDITO: Nova Escola