Como em um roteiro cinematográfico, o projeto político pedagógico de uma escola tem a função de alicerçar e nortear as ações de uma gestão escolar
Não sou crítico de cinema. Talvez se me pedissem para apostar no sucesso e na qualidade de um filme de dois super-heróis extremamente populares dos quadrinhos (e já consolidados como personagens no cinema), provavelmente, embarcaria de olhos fechados, mesmo sem perguntar o título.
Sorte minha que ninguém me propôs esse desafio há três anos. Se eu topasse, perderia dinheiro, já que o filme citado acima é "Batman vs Superman: a origem da justiça". O filme obteve uma bilheteria abaixo do esperado. Não chegou a dar prejuízo, mas acabou execrado pela crítica. Ele foi tão mal recebido que, em 2017, foi "premiado" com quatro estatuetas do Framboesa de Ouro – o troféu, por vezes, cruel que aclama anualmente as piores produções de Hollywood.
Já assisti a muitos filmes bons com atores medianos, com figurinos inadequados ou ainda com músicas que funcionavam mais como anticlímax do que como trilha sonora. Mesmo que não sejam obras primas, posso enumerar facilmente ao menos uma dúzia que me marcaram, divertiram, emocionaram, a despeito de não serem primorosos. Porém, aprendi uma regra importante sobre a produção cinematográfica: ninguém consegue salvar um roteiro ruim.
Não adianta gastar rios de dinheiro, ter elencos premiados, maquiagens e fotografias impecáveis, ou mesmo diretores geniais. Se o trabalho dos roteiristas for ruim o resultado será um desastre, porque é o roteiro quem orienta toda a filmagem. Este é o grande pecado de “Batman vs Superman”. O seu roteiro é péssimo: os acontecimentos são corridos e o desenrolar da história é cheio de furos. O que não deixa de ser uma ironia, já que um dos protagonistas do filme, o ator Ben Affleker, já venceu um Oscar pelo roteiro original de “Gênio Indomável”, em 1998.
Se o PPP fosse um roteiro de um filme
Se na tela grande o roteiro tem o papel de guiar os eventos, de indicar o tempo dos acontecimentos e de ser o norte das filmagens, nas escolas essa importante função é exercida pelo projeto político pedagógico (PPP). É por meio do PPP que uma unidade escolar apresenta as suas principais características, seus objetivos e metas.
O projeto político pedagógico deve refletir os anseios da comunidade escolar e indicar qual o tipo de ensino será priorizado naquele espaço. Como documento norteador, ele precisa possuir uma base sólida, capaz de alicerçar e apontar caminhos e ações no ambiente escolar, ao mesmo tempo em que deve ser flexível o suficiente para adequar-se às demandas de todos os segmentos da comunidade – mesmo depois do documento estar pronto. Todo PPP é singular, já que representa os interesses de um território específico. Ele será único, não pode ser copiado e não deve ser genérico, ou superficial.
No entanto, caso busquemos uma estrutura comum dos PPPs encontraremos quatro tópicos imprescindíveis, que devem estar presentes em sua construção: a percepção do espaço (incluindo os alunos e as suas famílias); os mais recentes indicadores de aprendizagem; a missão ou grande objetivo da escola; e as diretrizes e paradigmas pedagógicos que serão seguidos. Estes itens formarão a base dos planos de ação anuais. Isto significa que pelo menos uma vez ao ano o PPP deve ser revisitado e, quando necessário, atualizado ou readequado.
A Escola Municipal Professora Ivone Nunes Ferreira, onde atualmente sou diretor, está neste processo de construção. Não temos ainda um PPP já que a nossa unidade escolar foi inaugurada apenas em março deste ano. Diante disto, amigo leitor, lhe convido a conhecer como pretendemos criar o nosso projeto político pedagógico, apontando o que já realizamos e elencando os caminhos e pontos essenciais que seguiremos para a confecção do nosso roteiro.
Quando chegamos, tudo era mato
Identificar as diferenças e singularidades de uma comunidade escolar é o primeiro passo para a construção de um PPP. Quando eu e o Paulo Vitor (meu adjunto) fomos convidados para assumirmos a gestão da Ivone Nunes em fevereiro deste ano, a nossa primeira preocupação foi a de tentar compreender o território em que a nossa escola estava inserida. Não à toa, dois dias após a formalização do convite, nós literalmente invadimos a escola (ainda em construção) para conhecê-la.
Havia a previsão para o término da obra em algumas semanas, quando nós iríamos, juntos com o setor de gerência de infraestrutura, receber o prédio. Porém, precisávamos conhecer o espaço e o território. Então, antes mesmo da entrega fomos visitar a escola, por conta própria. Deixamos o carro na rua principal e entramos a pé na comunidade. Já na obra, conversamos com o encarregado que nos deixou entrar. Assim, se deu o nosso primeiro contato com a unidade que iríamos gerir.
Obviamente, poderíamos saber detalhes sobre a quantidade de salas, a previsão do número de turmas, a relação de estruturas e anexos por meio da Coordenadoria Regional de Educação. Mas não era a mesma coisa que ver, estar e sentir efetivamente como eram as dependências da Ivone Nunes.
Neste simples movimento pudemos perceber que a estrutura da escola possuía dois elementos como paradigma de sua construção: a acessibilidade e a sustentabilidade. Somada a esta visita, pesquisamos a origem do bairro e da comunidade da Brasilit (também conhecida como Sapo II ou Perereca) – surgida em 2012, com a construção de 2200 apartamentos do Programa Minha Casa, Minha Vida. Por fim, contatamos a empresa Eternit – dona do terreno na década de 1990, que fabricava telhas e outros produtos de amianto – para entendermos como, historicamente, aquele espaço era constituído.
Em nossa primeira impressão, notamos que a comunidade ainda estava construindo a sua identidade – já que nem o nome definido ela tinha concretamente. E percebemos que poderíamos desenvolver projetos que remontassem o passado do território (antes contaminado pelo amianto), evocando novas práticas de sustentabilidade, para forjar essa identidade. Estávamos com a faca e o queijo na mão para termos a primeira estrutura do nosso PPP em duas semanas, caso fôssemos gestores centralizadores, ou o projeto político pedagógico não demandasse uma elaboração democrática.
Porém, a ideia de um espaço escolar baseado na sustentabilidade era apenas a visão da direção. Era necessário debatê-la com os outros membros da comunidade, que trariam novos prismas e olhares. Um PPP precisa refletir realidades, percepções e vivências, sempre no plural, com participação ativa de todos os segmentos que compõem o território escolar.
Por sermos uma escola recém-inaugurada, os parceiros de construção do nosso PPP foram chegando somente depois que assumimos a direção. Amigo leitor, você conhece aquela expressão “quando cheguei aqui, isto tudo era mato”? Então, até o dia 10 de março passado, a Ivone Nunes era resumida a mim e ao Paulo Vitor. De lá para cá, buscamos outras vozes interessadas em construir o roteiro da nossa escola, convocando reuniões periódicas com os responsáveis. Era o caminho para não deixarmos o processo parado.
Claro que esta foi uma ação paliativa, pois existem entes essenciais no movimento de criação do PPP de uma unidade escolar. Além das equipes gestora e pedagógica, é imprescindível a presença do Conselho Escola-Comunidade (CEC) na elaboração do documento. O CEC apresenta em sua formação representantes de todos os segmentos. Por isto, ele deve ter um lugar de protagonismo nas decisões sobre o futuro da escola. Não há como elaborar um PPP democrático sem este conselho.
Há outros atores importantes que podem se fazer presentes. Caso haja um grêmio estudantil formado, por exemplo, ele deve ser consultado. Consolidando a ideia de que mais do que uma escola, devemos construir territórios educativos, se houver uma associação de moradores que representante a comunidade, ela pode (e deve) ser convidada a participar.
O último aspecto que demanda a compilação de dados está na identificação dos indicadores de aprendizagem da escola. Conhecer os nossos alunos em suas limitações e potencialidades nos dá condições de criar bases para um projeto político pedagógico adequado à realidade escolar. Assim, devem estar presentes na introdução do PPP o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), os dados sobre a aprovação e a reprovação do ano anterior e o quantitativo de alunos que apresentam distorção série/idade em cada seriação.
Projeto político
Compilados os dados territoriais e de aprendizagem e definidos os autores do projeto político pedagógico, chegamos aos dois últimos aspectos presentes em todo PPP: a definição das diretrizes pedagógicas e a missão ou objetivo da escola. Ambos darão base para os planos de ação anuais. Nestes pontos, o projeto além de “pedagógico” ganha força em seu caráter “político”.
Pensar em um documento que traz em sua nomenclatura o termo “político” e entendê-lo como imprescindível para uma unidade escolar, é acima de tudo pacificar a ideia de que a escola é um espaço de diálogo, de construção coletiva de conhecimento e que compreende a inexistência de qualquer pretensão de neutralidade. Temos que tomar partido, porque precisamos fazer escolhas.
O filósofo grego Aristóteles afirmava que “o homem é um animal político por natureza”. Quando percebermos que a política não se restringe ao jogo partidário, consolidamos a noção de que todos os membros de uma comunidade escolar fazem política diariamente. Isso acontece porque “fazer política”, segundo o filósofo, se definiria por buscar a felicidade e o bem comum através do diálogo, do debate e do convencimento. A política também está nas legendas partidárias, mas não só nelas.
Quando uma equipe pedagógica define os conteúdos anuais em detrimento de outros, isto é um ato político. O questionamento de um responsável sobre os gastos da escola ou um apontamento sobre a didática de um professor – com críticas ou elogios – são atos políticos. A construção de uma organização coletiva de alunos ou mesmo a reinvindicação pessoal de um estudante por melhorias no espaço escolar configuram-se como atos políticos.
Fazer escolhas e tomar partido na busca do bem coletivo é agir politicamente. Como consequência disto, o documento que deve nortear uma unidade escolar, o nosso roteiro ou PPP, será essencialmente político. E ele só terá significado e significância caso reflita os anseios dos membros da comunidade que a compõe.
É evidente que se espera das equipes gestora e pedagógica a liderança na proposição das diretrizes educacionais de uma unidade escolar. No entanto, também elas devem estar em sintonia com os desejos da comunidade. Nossa escola prima por uma Educação inclusiva, laica, com proposições construtivistas. Investimos na ludicidade das atividades e buscamos através do diálogo desmistificar e derrubar preconceitos de gênero, credo e raça. Estas diretrizes partiram da gestão, mas em forma de proposta. As ideias foram apresentadas nas primeiras reuniões pedagógicas e de responsáveis, com espaço para críticas, adequações e intervenções.
Para conclusão do PPP, devemos definir a missão e objetivo da escola sob bases reflexivas. É importante partirmos de questionamentos como: qual é a importância desta escola dentro do território? O que a nossa escola representa para a sua comunidade? De que maneira o espaço escolar pode impactar a vida dos alunos e de suas famílias, para além dos muros da escola? Desta forma, estaremos mais próximos de construir um projeto político pedagógico que fomente a percepção de pertencimento do espaço escolar por todos os indivíduos que compõe a escola.
Nestas bases, com um PPP sólido e democrático, os planos de ação terão sempre um norte, como em um roteiro. As orientações anuais acabarão por refletir a essência da unidade escolar por se originarem em uma obra coletiva. Caberá aos membros da comunidade, orientados pelas equipes gestora e pedagógica estipular metas plausíveis, os momentos de avaliação e replanejamento, definir temas, cronogramas e atividades pedagógicas.
Na tela grande, um bom roteiro é meio caminho para o sucesso. Nas unidades escolares, um bom PPP, sempre atualizado e visitado, é a garantia da formação de um legado para todo o território educativo.
Um forte abraço,
CRÉDITOS: Gestão Escolar