domingo, 10 de dezembro de 2017

AVALIAR PARA CRESCER

No ambiente escolar, a avaliação só faz sentido quando serve para auxiliar o estudante a superar as dificuldades
Por: Paola Gentile
Notas fechadas, boletins entregues, diários de classe arquivados. Missão cumprida? Não para Cristiane Ishihara, professora de Matemática das 5ªs séries no Colégio Assunção, em São Paulo. Como faz ao final de cada bimestre, ela vai pegar as anotações que fez em sala, os resultados dos exames e os questionários que a turma responde após as provas. Tudo com um objetivo: avaliar o próprio desempenho. "Dar provas, corrigi-las e entregá-las não é mais suficiente para mim. Preciso saber onde estou falhando para planejar o que e como ensinar", afirma. Cristiane está dando o primeiro e mais importante passo rumo a um sistema de avaliação escolar justo e motivador. Culpar a criança pelas notas baixas, o desinteresse ou a indisciplina nem passa pela cabeça dela. "Basta que alguns tenham ido mal nas provas para eu saber que preciso mudar de didática ou reforçar conteúdos". 
Ao rever seu trabalho, Cristiane mostrou que está mesmo no caminho certo. "Não interessa o instrumento utilizado. Pode ser prova, chamada oral, trabalho em grupo ou relatório. O importante é ter vontade de mudar e usar os resultados para refletir sobre a prática", explica o consultor e educador Celso Vasconcelos. Para ele, de nada adianta selecionar novos conteúdos ou métodos diferentes de medir o aprendizado se não houver intencionalidade - palavra que ele define, em tom de brincadeira, como "a intenção que vira realidade". "Enquanto as crianças se perguntam o que fazer para recuperar a nota, os professores devem se questionar como recuperar a aprendizagem", aconselha.

Mas por que mudar se tudo está correndo bem? O professor ensina, a criança presta atenção e faz a prova. Se foi bem, aprendeu. Se foi mal, azar - é preciso seguir com o currículo. Esse sistema, cristalizado há séculos, deposita nos conteúdos uma importância maior do que eles realmente têm. Até os anos 60, 80% do que se ensinava eram fatos e conceitos. A prova tradicional avaliava bem o nível de memorização das crianças. Hoje, essa cota caiu para 30%. Além de fatos e conceitos, os estudantes devem conhecer procedimentos, desenvolver competências. E a mesma prova escrita continua a ser aplicada...

Se a missão da escola ao raiar do século XXI é desenvolver as potencialidades das crianças e transformá-las em cidadãos, a finalidade da avaliação tem de ser adaptada, certo? "Na minha opinião, seu principal papel deve ser ajudar a criança a superar suas necessidades a partir de mudanças efetivas nas atividades de ensino", define Vasconcelos. "O ideal é que ela contribua para que todo estudante assuma poder sobre si mesmo, tenha consciência do que já é capaz e em que deve melhorar", diz Charles Hadji, professor e diretor do Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Grenoble, na Suíça (leia entrevista na segunda página).

É consenso entre os educadores que o aprendizado, na sala, não se dá de forma uniforme. Cada um de nós tem seu ritmo, suas facilidades e dificuldades. Afinal, somos pessoas distintas. O que complica bastante a vida do professor, que passa a ter de avaliar cada criança de um jeito. "Sim, todos merecem ser julgados em relação a si mesmos, não na comparação com os colegas", afirma o espanhol Antoni Zabala, especialista em Filosofia e Psicologia da Educação e professor da Universidade de Barcelona. "Não dá para fugir", continua ele. "É essencial atender à diversidade dos estudantes."

Ele dá um exemplo. "Que altura deve pular um jovem de 11 anos?" A resposta é: "Depende..." Depende de sua potência motora, de suas capacidades físicas e emocionais, das experiências anteriores e do treinamento, do interesse pela atividade e muito mais.

Por isso, alguns saltam 80 centímetros. Outros, 1 metro. Poucos, 1,20 metro. "Se estabelecemos uma altura fixa, excluímos os que não conseguirem chegar lá no dia em que a habilidade for medida". Da mesma forma, "quanto" deve saber uma criança? A resposta também é depende. De sua história, dos conhecimentos prévios, da relação com o saber e de incontáveis outros fatores. E não existe ninguém mais capacitado do que o professor para saber "quanto" essa criança domina (ou tem a obrigação de dominar) em termos de conteúdos, conceitos e competências.

O papel do desejo
Quando a escola não leva isso em conta, o estrago é inevitável. Estudos realizados pela pesquisadora Kátia Smole sobre o impacto da avaliação na auto-estima da criança mostram que os boletins baseados no desempenho em provas têm apenas uma função: classificar a garotada em "bons" ou "maus", o que tem cada vez menos utilidade. "O pressuposto de que existe uma inteligência padrão está ultrapassado", avalia. Segundo ela, o que acaba ocorrendo são desvios no objetivo maior da escola, que é ensinar. Ao sentenciar que uns são mais e outros, menos, o saber fica em segundo plano. "O jovem valoriza a nota, não o aprendizado", exemplifica. "Em vez de se relacionar com o mundo, ele só vai querer aprender em troca de prêmio (a nota) e, nesse ambiente, só sobrevive quem se adapta ao toma lá, dá cá."

Mas existe uma conseqüência mais nefasta: tirar da criança a vontade de aprender. Afinal, só existe motivação quando há desejo. A criança que não valoriza o saber não tem motivos para cobiçá-lo. "O antigo sistema forma pessoas submissas e intolerantes. Quem não consegue atender à expectativa do professor e da sociedade acaba marginalizado", analisa Kátia.

Antoni Zabala apresenta exemplos bem práticos - e recheados de comparações com fatos do dia-a-dia - para ajudar a desatar esse grande nó. "O professor deve ser um misto de nutricionista e cozinheiro", diz ele. "O primeiro preocupa-se em elaborar refeições saudáveis e o outro quer pratos apetitosos. No planejamento da atividade, devemos agir como nutricionistas, pensando nas competências que a criança deve desenvolver. Na classe, precisamos atuar como cozinheiros, propondo atividades interessantes e que possam ser executadas com prazer."

Na sua opinião, a avaliação completa envolve quatro etapas, tantas quantas uma dona-de-casa executa ao fazer compras. "Ela vê o que tem na despensa, lista o que falta, estabelece objetivos ? como preparar refeições balanceadas - e vai ao mercado", descreve. "Lá, ela começa uma série de observações, que podem mudar os rumos da tarefa original. Se um produto estiver muito caro, a saída será buscar outro ponto de venda. Se estiver estragado, terá de ser substituído por outro de semelhante valor nutritivo."

Traduzindo para a sala, o professor precisa de objetivos claros, saber o que as crianças já conhecem e preparar o que eles devem aprender - tudo em função de suas necessidades (avaliação inicial). O segundo passo é selecionar conteúdos e atividades adequadas àquela turma (avaliação reguladora). Periodicamente, ele deve parar e analisar o que já foi feito, para medir o desempenho dos estudantes (avaliação final). Ao final, todo o processo tem de ser repensado, de forma a mudar os pontos deficientes e aperfeiçoar o ensino e a aprendizagem (avaliação integradora). Clique aqui para conhecer um exemplo muito objetivo de como fazer isso, com estratégias específicas para vários conteúdos, tendo como ponto de partida o estudo da Bacia Amazônica.

A primeira pergunta que professores, coordenadores e diretores devem fazer é: Com que objetivo vamos avaliar? Para formar pessoas ou futuros universitários? Para classificar e excluir crianças ou para ajudá-las a aprender? Para humilhá-las com suas dificuldades ou incentivá-las com suas conquistas? É importante frisar que não existe resposta certa ou errada. Ela está no projeto pedagógico de cada escola. Se a opção é selecionar os melhores e excluir os outros, então a melhor saída é a boa e velha prova. Caso o compromisso seja no sentido de incentivar a criança a enfrentar desafios, então a conversa muda de rumo.

Infelizmente, não existe uma fórmula mágica. Ao contrário. "A escola ideal, que atenda à formação de cada um individualmente, não existirá nunca. Mas estabelecer que esse é o horizonte aumenta as chances de acertar o caminho", acredita Zabala. Celso Vasconcelos também entende que o sistema tradicional não atende aos objetivos da escola do terceiro milênio, mas acha que é possível democratizá-lo. "Se a nota for dinâmica e servir como indicadora da situação da criança naquele momento, ela pode apontar rumos a seguir".
"Dar provas, corrigi-las e entregá-las não é mais suficiente para mim. Preciso saber onde estou falhando para planejar o que e como ensinar"
Idéias de mestre 

"Enquanto as crianças se perguntam o que fazer para recuperar a nota, os docentes devem sempre se questionar sobre a melhor maneira de questionar sobre a melhor maneira de recuperar a aprendizagem"
Celso Vasconcelos
Íntegra da entrevista

"O professor tem de ser um misto de nutricionista e cozinheiro para elaborar refeições saudáveis e pratos apetitosos, ou seja, desenvolver atividades prazerosas e eficientes" 
Antoni Zabala
Íntegra da entrevista

"É preciso romper definitivamente o estereótipo do mestre com a fita métrica na mão, pronto para medir, julgar e rotular cada um de seus estudantes" 
Luiz Carlos de Menezes
Incentivo ao aprender 

É justamente o que faz Cristiane Ishihara. Ela criou um jeito próprio de melhor aproveitar o exame. Dias depois de aplicá-lo, ela o distribui novamente, em branco, e pede que cada criança responda, para cada problema proposto, se:

? fez e está seguro de que aprendeu;

? fez, mas não está seguro de que tenha aprendido;

? fez, mas tem certeza de que errou por ter-se confundido na resolução;

? fez, mas tem certeza de que errou porque não aprendeu;

? se não fez, qual o motivo.

"Essa foi a maneira que encontrei de colocar a prova a serviço dos estudantes", explica. Depois de tabular as respostas, ela detecta as dificuldades gerais da turma e as específicas de um determinado grupo, além do nível de segurança de cada um em relação aos conteúdos. Se a maioria apresentou deficiência, Cristiane ensina tudo de outra maneira. Se alguns não aprenderam, ela prepara exercícios para ser trabalhados em casa ou na sala.

De mestre a parceiro 

Esse método é elogiado por especialistas. "A dificuldade da criança deve mesmo ser encarada como um desafio pelo professor", endossa Luiz Carlos de Menezes, físico, educador e um dos autores da matriz de competências do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). "O importante é que a avaliação esteja fundamentada, explicando claramente aqueles tópicos em que o estudante avançou e quais ele ainda precisa trabalhar." Sem esquecer, é claro, de mostrar como isso pode ser feito.

Dessa maneira, o educador se torna um parceiro, que quer e vai ajudar: "É preciso romper definitivamente o estereótipo do mestre com a fita métrica na mão, pronto para medir, julgar e rotular cada um de seus estudantes." Assim como Zabala e Vasconcelos, Menezes encara a prova com muitas restrições, pois ela geralmente é centrada na memorização e no uso de algoritmos e foca conteúdos científicos com dia e hora marcada para acontecer.

É por isso que muitos apontam o professor de Educação Infantil como um modelo a ser seguido. Todos os dias, ele oferece atividades diferentes e criativas para reter a atenção das crianças, orienta todo o trabalho, que geralmente é feito em grupo, e observa. Observa muito, e aí está o segredo. A cada dois ou três meses elabora um relatório para os pais, enumerando os pontos em que a criança avançou e os que precisam ser trabalhados, tanto no que diz respeito a conhecimentos como a atitudes (conheça experiência do Colégio Pueri Domus).

Mas como olhar atentamente e conhecer bem cada estudante, se as classes têm 30 ou 40 deles e o professor tem duas ou três atividades por semana com diversas turmas, que mudam todos os anos? Já imaginou propor atividades diferentes de acordo com o nível de aprendizado e, ainda por cima, fazer um relatório personalizado no final de cada bimestre?

Sim, é possível fazer isso. A saída mais eficiente, dizem os especialistas, é propor trabalhos em grupo, que permitem observar melhor as atitudes individuais e coletivas. Menezes sugere ainda que se dê prioridade a estudos do meio, com propostas de atividades variadas, nas quais todos tenham a chance de explorar suas potencialidades. Um bom exemplo disso é o Colégio Lourenço Castanho, que organiza viagens com finalidades didáticas.

Outro consenso é a importância da auto-avaliação. Ela está diretamente ligada a um dos objetivos fundamentais da educação: aprender a aprender. É óbvio que a própria criança tem as melhores condições de dizer o que sabe e o que não sabe, se um determinado método de ensino foi ou não eficaz no seu aprendizado e de que maneira ele acredita que pode compreender determinados conteúdos com mais facilidade. Para isso, basta conversar com a turma, de forma sincera e direta, ou fazer questionários onde todos possam expor livremente suas críticas e sugestões. Quanto mais freqüentes forem essas conversas mais rapidamente aparecerão os problemas e, o que realmente importa, as respectivas soluções. Para caminhar nessa direção, as escolas da rede municipal de João Monlevade, em Minas Gerais, estão se reinventando.

"Disciplinas, espaço e tempo devem ser instrumentos da educação, não seus carrascos", resume Zabala. E você? Gostou do que leu nessa reportagem e quer transformar sua escola? Ouça o conselho de Zabala. "Se você quer mudar as formas de avaliar, parabéns. O passo mais importante para a mudança acaba de ser dado."