O que você faz nunca está bom o bastante, mas o que os outros fazem é
pior? Você é um perfeccionista e não merece parabéns por isso. Saiba por quê
Por Mariana Sgarioni
access_time29 fev 2008, 22h00 - Atualizado em 31 out 2016, 18h27
A arquiteta Priscila*, do Rio de
Janeiro, não delega tarefas a nenhum colega. Todo dia ela faz tudo sempre
igual: chega cedo ao escritório e mergulha no trabalho, fazendo e refazendo
coisas, checando e rechecando dados. Ninguém – pensa ela – é capaz de igualar seu
capricho e dedicação ao trabalho. Sem ajuda, um belo dia Priscila vacilou:
esqueceu um relatório em cima da mesa e, por isso, atrasou (só um pouquinho) a
entrega de um projeto. Pronto, seu mundo caiu. Ela chorou sem parar – logo ela,
tão atenciosa, cometeu um deslize imperdoável. Aliás: existiria algum deslize
perdoável?
Priscila é uma perfeccionista. E isso
não é bom, nem para ela nem para ninguém.
Como todos gostaríamos que o mundo
fosse perfeito, aqueles que buscam se aproximar desse ideal sempre foram
associados a atributos positivos como disciplina, ordem, esmero e disposição
para o trabalho duro. Só que, na tentativa de entregar a perfeição, não raro o
perfeccionista simplesmente deixa de entregar. Perturbado pela idéia de manchar
a reputação com tarefas malfeitas, ele destrói essa mesma reputação por não
cumprir prazos e metas.
O perfeccionista é inflexível, teimoso,
excessivamente preocupado com detalhes e obcecado pelo trabalho. Tudo isso
acaba por inviabilizar a convivência social e profissional. Ninguém quer ter
por perto um sujeito cabeça-dura, que não admite sair um milímetro da linha –
fazer coisas como tomar uma cervejinha de vez em quando na hora do almoço em
dia de expediente. Ninguém quer trabalhar com alguém que, dependendo do dia,
pode produzir uma maravilha ou dar um belíssimo cano.
Sozinho e sem trabalho, o
perfeccionista sofre e acaba procurando ajuda profissional. Médicos e
psicólogos têm recebido um número cada vez maior de pacientes portadores desse
problema, que pode desencadear coisas ainda piores: depressão, vícios,
compulsões e até suicídio.
A mente perfeccionista
Por não serem estigmatizados como os
portadores de outros distúrbios – como depressão ou síndrome do pânico –, os
perfeccionistas raramente percebem que há algo errado com eles. “Eles têm
orgulho de sua condição, já que a cultura da nossa sociedade valoriza e reforça
as atitudes deles”, afirma Alice Provost, psicóloga da Universidade da
Califórnia em Davis (EUA) que estuda o comportamento perfeccionista.
A auto-imagem positiva é uma das poucas
alegrias dessas pessoas. “O perfeccionismo traz muito sofrimento, como medo
excessivo de cometer erros, pressão sobre a própria performance, tensão,
frustração, tristeza e medo de humilhação”, explica a psicóloga americana
Monica Ramirez Basco no livro Never Good Enough: Freeing Yourself from the
Chains of Perfectionism (“Nunca Bom o Bastante: Libertando-se das Correntes do
Perfeccionismo”, sem tradução para o português). “Isso porque os
perfeccionistas têm a convicção de que só serão aceitos pelos outros se forem
perfeitos.” Segundo Monica, a maioria das pessoas que se torna perfeccionista
aprendeu desde muito cedo que só seria reconhecida e avaliada por suas
realizações – nunca pelo que elas são. Desse modo, seu comportamento é pautado
a partir da avaliação das outras pessoas, o que faz com elas queiram ser sempre
perfeitas para se proteger das críticas.
Monica catalogou os perfeccionistas em
duas categorias opostas: os introspectivos e os extrospectivos. Os primeiros
são aqueles que têm auto-estima baixíssima, não confiam em nada do que fazem.
Nunca estão satisfeitos com seus trabalhos; acham que qualquer errinho será uma
catástrofe e os outros não irão gostar mais deles. Os outros têm a auto-estima
elevada, mas não confiam em absolutamente ninguém no trabalho – não delegam
nada e exigem que todos ao seu redor alcancem a perfeição que eles buscam em si
mesmos. São, em português claro, chatos.
Já que enveredamos pela taxonomia do
distúrbio, saiba que o perfeccionismo é só uma característica – ainda que a
principal – daquilo que os médicos chamam de personalidade
obsessivo-compulsiva. (Aqui, parênteses para explicar que isso não é o já
popular TOC – transtorno obsessivo-compulsivo –, marcado por rituais
repetitivos como lavar as mãos o dia inteiro ou checar 20 vezes por dia se a
porta está trancada. Os portadores de TOC costumam ter consciência de sua
condição e procuram tratamento logo.)
Quem sofre de personalidade
obsessivo-compulsiva tem sérias dificuldades de se adaptar ao meio em que vive.
Além de perfeccionismo, o “pacote” traz uma preocupação excessiva com regras,
detalhes e organização de processos, excesso de escrúpulos e de moralidade. Ele
é tão obcecado por métodos e processos de organização que dificilmente consegue
finalizar uma tarefa – as regras são mais importantes do que a meta. Por
exemplo: o roteirista que está habituado com a organização dos arquivos em seu
computador pode entrar em parafuso se sua máquina pifar e ele for obrigado a
trabalhar numa emprestada. Só que, na maioria das vezes, essa esquisitice é
confundida com um simples “jeito de ser”.
Fale a verdade: quantas pessoas com
essas características você conhece? E que gostam de dizer que são teimosas,
detalhistas ou simplesmente metódicas? Pois é, elas podem ser doentes. “A
personalidade obsessivo-compulsiva dos perfeccionistas não é sentida como um
corpo estranho na vida, assim com um ataque de pânico ou uma crise de
depressão, que incomoda e a pessoa sente necessidade de tratar”, diz Geraldo
Possendoro, psiquiatra e professor de medicina comportamental da Unifesp. “O
obsessivo-compulsivo acha que é assim mesmo e pronto.”
Esse sujeito não busca ajuda até
começar a sofrer perdas na vida – e não saber direito o porquê. A separação
conjugal, a perda de amigos e a falta de trabalho podem descambar para a
depressão e/ou a dependência de álcool e/ou de drogas. Esse é o estopim do
pedido de socorro, mas não a razão do sofrimento. “O problema primário disso
tudo é a personalidade obsessivo-compulsiva, marcada pelo perfeccionismo”, diz
Geraldo.
Doença do nosso tempo
Até aí, você deve estar pensando: gente
teimosa e turrona existe desde que o mundo é mundo. Por que só agora se
percebeu que isso é um transtorno de personalidade que deve ser tratado? Porque
a vida nunca foi tão difícil para os perfeccionistas.
Até poucas décadas atrás, o ritmo mais
lento da vida – e do trabalho – dava espaço a que o sujeito cabeça-dura se
ocupasse com suas obsessões e fosse especialista nelas. Um afinador de pianos
podia demorar semanas para devolver o instrumento ao cliente, pois seu trabalho
dependia somente de talento, aptidão e treinamento. Mas as coisas mudaram:
surgiram artefatos eletrônicos que, se não substituem perfeitamente o trabalho
de um ouvido absoluto, tornam o serviço bem mais rápido e com um resultado
aceitável para a maioria dos mortais. Pior para os afinadores perfeccionistas,
inventaram pianos eletrônicos que nunca precisam ser afinados.
Em resumo: a pessoa precisa saber se
adaptar, coisa dificílima para um perfeccionista. “Vivemos numa era em que as
vidas social, profissional e afetiva exigem flexibilidade”, afirma Geraldo
Possendoro. “Quem não é flexível fica para trás e sofre de ansiedade.”
Além disso, a era da informação rápida
e fácil – mas nem sempre confiável – é o inferno dos perfeccionistas porque os
obriga a elevar os próprios padrões de exigência. Até meados da década de 1990,
um jornalista que quisesse escrever sobre afinação de pianos precisaria se
desdobrar para achar fontes especializadas de informação. Qualquer besteira
escrita passaria em branco para a maioria dos leitores – só os perfeccionistas
teriam disposição para correr atrás dessas fontes. Hoje, qualquer tipo de
informação – de afinação de pianos a disfunções intestinais do bagre africano –
estão disponíveis na internet para o jornalista, seu chefe e todos os seus
leitores (ai, Jesus!).
Mais fácil que mudar esse mundo é
tentar amolecer a cabeça dura dos perfeccionistas. Mas como? A psicóloga
americana Alice Provost propôs um exercício para o grupo que estudou na
universidade – uma série de regras que tinham por objetivo livrar essas pessoas
de suas próprias regras mentais. Elas eram mais ou menos assim: termine o
expediente na hora certa; não chegue ao trabalho antes da hora estabelecida;
faça todas as pausas a que tem direito; deixe a mesa bagunçada; determine um
número de tentativas para concluir um trabalho e, em seguida, entregue o que
tiver. “Parecem coisas banais, porque aquilo que alguns deles consideram
fracasso é algo para o que a maioria das pessoas não dá a mínima importância”,
diz. Depois pergunte: você foi castigado? A universidade deixou de funcionar?
Você está mais feliz? Segundo a professora, os cobaias perceberam que se
preocupavam demais com bobagens. “Todos ficaram surpresos porque tudo continuava
funcionando.”
FONTE:
http://super.abril.com.br/historia/mais-que-perfeito/